terça-feira, 10 de abril de 2012

Texto da Serie "Contos Sobre a Morte"

O Que Não Me Serve

A calça jeans curta e desbotada já não me servia mais; cresci e as minhas finas canelas não se escondiam; em minha cintura o cinto não era mais útil e aos oito anos de idade dei conta que aprendi uma valorosa lição vinda de meu pai Sebastião, “o que não te serve passe aos outros”, eu era o caçula de uma família composta por mais sete pessoas, meus pais, minhas quatro irmãs e meu irmão. As dificuldades sempre rondavam a minha casa e com elas aprendemos a superar o incomodo da falta de recursos financeiros, o fato é que por ser o novato automaticamente eu me tornava o único herdeiro das roupas de meu irmão José, o sapato de solado gasto, a camisa e sua falta de alguns botões, que com o capricho de minha mãe eram reparados na antiga máquina Singer, que além dos serviços domésticos ela utilizava para ganhar algum trocado costurando para fora.
Em meus inocentes pensamentos eu não conseguia visualizar como passar adiante o que não me servia, por não possuir um irmão menor acreditei que a surrada calça jeans não vestiria mais nenhum outro garoto e teria o inevitável fim das maiorias das roupas velhas, virar pano de chão, mas não foi isso que aconteceu, meu pai separou em uma pequena sacola algumas vestes, dentre elas o jeans, eram para um primo meu recém chegado da Bahia, como de costume olhou em meus olhos e soltou sua famosa frase “o que não te serve passe aos outros” e essa inteligente afirmação passou a fazer parte da minha rotina.
A vida prosseguia, as folhas do calendário caiam como as folhas das árvores na estação do outono e adiante passei tudo o que não me servia, o meu tênis andava por um caminho desconhecido, minha camiseta acariciava outra pele, os livros que li fantasiavam a imaginação de outros leitores, e aos dezoito anos com o emprego de motoboy comprei o tão desejado sofá de couro para minha mãe e o antigo passei a frente.
A minha vida seguia em cima de duas rodas, em São Paulo há uma trágica estatística, um motoqueiro morre por dia nas ruas da cidade, ao certo não sei o que aconteceu estava trafegando com minha moto na Rua da Consolação e fui fechado por um ônibus, e só o que lembro, foi socorrido pelo SAMU ao Hospital das Clínicas, onde permaneci cinco dias em coma e prestes há completar dezenove anos tive a minha morte cerebral decretada, a vida em meu corpo era mantida pelas máquinas, apesar do momento de imenso sofrimento para a minha família e como era o meu desejo e conhecimento de todos, meus órgãos foram doados, e em meus familiares surgiu uma pequena sensação de reconforto e como meu pai me ensinou “o que não te serve passe aos outros” e tudo aquilo que em mim não tinha mais serventia passei para a vida daqueles que lutavam pela cura de seus males, em outro rosto as minhas córneas vislumbravam a vermelhidão do por do sol, retratos e fotografias coloridas eram cultuados, meus rins purificavam o sangue o positivo que por novas veias conduzia a vida, os meus pulmões cumpriam uma simples tarefa de encher as bexigas da festa de aniversario e a abençoada inspiração era um sopro de alegria e o meu coração pulsava forte no peito de uma jovem mãe que agradecia a Deus a nova chance de acompanhar o crescimento de seus dois filhos e poder compartilhar o amor junto a seu marido, para esses personagens tudo ganhava outro sentido e reinava a certeza que suas vidas teriam sequencia.
E eu aqui, onde estou fico satisfeito em ter levado a felicidade a todos e transmito a vocês a valorosa lição que aprendi com meu pai “o que não te serve passe aos outros”.

Fabiano Sorbara